
A relação entre literaturas sa e brasileira foi importante e se revelou de diversas formas ao longo do tempo. Não há exagero em dizer que desde os primeiros contatos do europeu até a modernidade contribuiu para a formação do cânone literário brasileiro. Vejamos. Esteve nos textos descritivos de viajantes dos Quinhentos. No Barroco, em autores que potencializaram o uso de metáforas. No Romantismo, na estética que privilegiava o amor, a natureza, o nacionalismo e o individualismo. No Realismo e no Naturalismo, onde tornou explícita a emergência de um novo tipo de relato com foco na realidade social e no corpo. Nos Simbolismo e Decadentismo, determinantes na inspiração de poetas que acolheram novo sentido de subjetividade e misticismo. E até o Modernismo, marcado pela proposta de Semana de Arte Moderna de romper com correntes europeias, acolheu os surrealistas que tiveram impacto sobre parte da nossa poesia no período.
Embora pareça banida da obra de escritores brasileiros pós-modernos, ela continua a influenciar nossa literatura pela via da tradução e publicação de obras de novos autores e constante busca por influências e estilos. A prosa sa tem boa acolhida em nosso país, haja vista o sucesso de vendas dos livros expostos na última Bienal. O romance, em especial, atrai leitores por sua universalidade ao questionar as noções tradicionais de tempo, espaço, consciência e perspectiva e ao refletir a complexidade do mundo moderno, despertar reflexões sobre os desafios e dilemas da vida, explorar a busca por significado, identidade e propósito. Não se limita a um único estilo ou gênero, explorando diferentes formas narrativas e abordagens temáticas. Entre nomes de destaque nesta ficção se encontra Valérie Perrin, 58 anos, autora de ‘Água fresca para as flores’, ‘Os Esquecidos de Domingo’ e ‘Três’, romance lançado em 2023 e assunto deste comentário. Valérie também é fotógrafa e roteirista de cinema tendo trabalhado com o marido, o cineasta Claude Lelouch, em alguns filmes. Os premiados títulos literários de Perrin foram traduzidos em mais de 30 línguas, uma delas o português.
‘Três’ é narrativa de 522 páginas que se leem de forma prazerosa dada a construção de instigante enredo sustentado por muitas situações misteriosas. Retomadas várias vezes, estas são paulatinamente esclarecidas pela narradora onisciente que percorre com seu olhar blocos de anos que vão da década de 80 aos nossos dias. Não há linearidade porque os acontecimentos encontram-se situados em tempos distintos, mas isso não dificulta o entendimento.
O título se refere aos personagens centrais da trama: a sensível Nina, o rebelde Etienne e o retraído Adrien, moradores de uma pequena cidade do interior da França, La Comelle. Amigos desde a infância, ligados por afetos intensos, formam um triângulo não exatamente equilátero que se deforma no correr das décadas. Personalidades distintas, vida familiar complicada por pequenas e grandes tragédias, certa incapacidade para lidar com acontecimentos da fase adulta, eles sentem muitas vezes, como a maioria dos seres humanos, frustração por não conseguirem controlar o mundo ao seu redor. Com estranhamento e alguma melancolia reconhecem que nem mesmo o laço forte da amizade foi capaz de resistir aos percalços da existência: enquanto a infância foi ficando para trás, a conexão entre os três começou a ceder aos obstáculos surgidos ao longo do caminho.
Trinta anos depois de terem se conhecido e partilharem o mais precioso e o mais banal de suas vidas, tornaram-se estranhos uns aos outros. A idealizada amizade que um dia haviam jurado eterna desvaneceu-se. Até que acontecimento inesperado traz à tona segredos enterrados há muito tempo. Um carro encontrado dentro de pântano com ossada humana em seu interior a a ser mais que um novo elemento da narrativa. Ele constitui importante metáfora sobre a vida íntima dos protagonistas mergulhados em seus dramas, dos quais emergem em meio a muito sofrimento, para só então se reencontrarem, já diferentes das pessoas que um dia tinham sido.
A delicadeza das emoções que fluem conforme as crianças transitam para a adolescência e desta para a vida adulta, a construção detalhada dos vínculos que mantêm unida a tríade desde os primeiros anos escolares e a ruptura que muda substancialmente a existência dos três são mostradas em linguagem clara mas profunda, em camadas densas, sem nenhuma concessão ao fácil e ao raso.
Subtemas importantes em nossa época ganham força ao longo da trama. A causa dos animais é um deles e entre os espaços mais recorrentes no enredo está o abrigo de cães e gatos abandonados gerenciado por Nina. A mudança de paradigma na comunicação humana é outro, tratado de forma poética na observação da profissão do avô carteiro. Há rápida menção histórica no recorte de um tempo fugaz onde se usou aparelho chamado fax. Pouco depois o advento dos celulares marca a aceleração dos contatos pessoais e um tipo inesperado de controle. Um caso de violência que hoje chamaríamos bullying ocupa na trama momento perturbador porque se concretiza nos gestos de um professor neurótico sobre seu aluno mais frágil. E a questão de gênero surge aliada ao foco narrativo que aguça o leitor desde as linhas iniciais do primeiro capítulo:
‘Hoje de manhã Nina me olhou sem me ver. Seu olhar escorregou como as gotas de chuva na minha capa impermeável, logo antes de ela desaparecer dentro de um canil. Estava caindo uma tempestade(...) Ela usava galochas grandes demais e segurava uma mangueira comprida(...) Entreguei trinta quilos de ração.’
As frases que fecham a história são bem parecidas às do parágrafo anterior e caracterizam o que tem sido chamado pelos críticos de ‘finício’, ou seja, um fim que remete ao início, uma saga cujo final é semelhante ao começo, mas sutilmente modificado a partir de minúcias que só palavras criteriosamente colocadas pela escritora conseguem traduzir:
‘Esta manhã, Nina me viu pela primeira vez. Olhou para mim por um bom tempo enquanto eu deixava os trinta quilos de ração debaixo das placas ABANDONO MATA e FAVOR FECHAR BEM A PORTA AO SAIR. Seu olhar não escorregou como as gotas de chuva na minha capa (...) Estava caindo uma tempestade. Usava galochas grandes demais e segurava uma mangueira comprida nas mãos, que acabou largando atrás de si.’
Complicadas e sofridas: assim as vidas dos personagens deste romance e de todas as vidas humanas que se refazem depois das dolorosas jornadas que são os lutos. Há luto pela infância feliz que ficou lá atrás, pela inocência perdida, pelos mortos queridos, pela impossibilidade de reencontros. Resta um pouco de ado no presente, o que não impede a caminhada. Galochas podem continuar grandes demais, a mangueira parecer muito longa, a tempestade um desconforto; mas os olhos agora enxergam o que por longo tempo haviam ignorado.
É impossível finalizar estas linhas sem reconhecer que a grande força da narrativa de Valérie Perrin, seu golpe de mestra da escrita, está na criação de uma narradora onisciente que não se deixa descobrir pelo leitor senão no final, amarrando de uma vez por todas as pontas deixadas propositalmente soltas. Por conta disso muitos leitores têm postado nos sites de literatura que ‘Três’ é um romance que provoca vontade de releitura para se apreciar devagar a arquitetura da trama, depois de respondida a natural curiosidade pelo desfecho. Maior elogio haverá para um ficcionista consciente de que um dos grandes valores da ficção não se encontra apenas na originalidade da história que se conta, mas na maneira como ela é contada?
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.